A quem pertence o corpo velho?
Geriatra e juíza, ambas doutoras em bioética, discutem o que é ter autonomia até o fim da vida Não uma palestra, e sim uma roda de conversa. A geriatra Claudia Burlá e a juíza Maria Aglaé Tedesco Vilardo criaram uma apresentação instigante, do começo ao fim, no GeriatRio 2019, que já foi objeto das colunas de terça e quinta-feira. “Meu corpo velho, minhas regras” era o título dessa quase “provocação”, já que o envelhecimento é pautado pelo processo da perda de identidade dos indivíduos. No entanto, em qualquer momento da trajetória de um ser humano, sua vontade deveria ser respeitada. A médica Claudia Burlá iniciou os trabalhos dizendo que o bate-papo seria baseado em três eixos: autonomia, capacidade decisória em relação aos cuidados na velhice e a possibilidade de descontinuar os tratamentos que estejam sendo feitos. Afirmou ter buscado inspiração na pintora Frida Kahlo, que morreu jovem, com apenas 47 anos, depois de suportar dores atrozes resultantes de uma poliomielite e de um grave acidente de trânsito. “O nome Frida resume o que se relaciona ao processo de envelhecimento. O F é de funcionalidade, a potência do corpo que, com a velhice, vai decaindo e abrindo a guarda para que doenças ocorram e haja um declínio progressivo. O R é de resiliência, que implica aceitação e adaptação em relação às novas situações e restrições. O I é de insuficiência, quando se caminha para um quadro irreversível, com um dia a dia de limitações até a dependência total. O D é de dignidade, o desejo de todo ser humano e que pode ser comprometido ao longo da nossa jornada. Por fim, o A é de autonomia que, após a saúde plena, é o maior patrimônio que temos. Significa viver de acordo com minhas regras e meus valores. A demência é um processo que pode durar de dois a 20 anos, ceifando o entendimento da pessoa em relação ao que está acontecendo em seu entorno. É de uma perversidade terrível, porque tira do indivíduo a possibilidade de expressar o quer. Portanto, a grande questão é como garantir que sejamos atendidos em nossos desejos no fim da vida”, enfatizou a geriatra. Da esquerda para a direita, a juíza Maria Aglaé Tedesco Vilardo, o geriatra Daniel Azevedo, mediador da conversa, e a médica Claudia Burlá Mariza Tavares Para uma plateia de profissionais da saúde, a juíza Maria Aglaé Vilardo fez questão de mostrar que temos leis – não uma, mas várias – que já dispõem sobre a questão, garantindo que a decisão seja da pessoa, e não de terceiros. “O Estatuto do idoso, em seu artigo 17º., é claro: ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais é assegurado o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável”, explicou. Se o idoso não estiver em condições de fazê-lo, essa função é do curador, no caso de curatela; em seguida, dos familiares, quando não houver curador ou este não puder ser contatado em tempo hábil; e depois ao médico, quando ocorrer iminente risco de vida e não houver tempo hábil para consulta a curador e familiar. “O médico vem em último lugar!”, ressaltou a juíza, que citou também o Código de Ética Médica (resolução número 2.217, de 2018): “o artigo 24 do Capítulo IV diz que é vedado ao médico deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo. A recusa terapêutica é um direito do paciente a ser respeitada pelos médicos e é importante afastar a cultura da judicialização. Inclusive, se o idoso está bem cuidado e protegido, não há razão para assoberbar o Judiciário com ações de curatela, mesmo com comprometimento cognitivo”. Ela afirma entender o sentimento de solidão do médico na hora de tomar uma decisão associada à terminalidade da vida do paciente. Além do medo de errar, a maioria sente-se insegura em relação ao amparo da lei, mas sua apresentação foi justamente mostrando que esse respaldo existe. E mais: acrescentou que o Artigo 5º. da Constituição põe no mesmo patamar a inviolabilidade do direito à vida e da liberdade. As perguntas que todos devem se fazer são: você sempre tomará as decisões sobre o seu corpo? Ou prefere transferir para outra pessoa essas decisões, mesmo que isso possa representar um peso enorme para um ente querido? São questões incômodas porque nos lembram de nossa finitude, mas ignorá-las não mudará o destino que cabe a cada um de nós. Entretanto, uma diretiva antecipada de vontade pode fazer diferença: quando o corpo for velho, mas quisermos que nossas regras valham.
Fonte: Globo.com
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