'Fiz laqueadura aos 25 anos e realizei um sonho'
Auxiliar administrativa carioca Karoline Alves compartilhou história para incentivar outras mulheres que desejam fazer procedimento 'a correr atrás dos direitos'; legislação obriga planos de saúde e SUS a oferecerem cirurgia. A laqueadura é um metódo anticoncepcional praticamente irreversível Getty Images/BBC A assistente administrativa Karoline Alves queria fazer uma laqueadura — cirurgia para não ter mais filhos — desde que soube que o procedimento existia, quando ainda era adolescente. "Sempre tive a certeza de que não queria ter filhos", conta ela à BBC News Brasil. "Mesmo usando outros métodos anticoncepcionais, toda vez que atrasa a menstruação a gente fica preocupada." "Nunca me vi sendo mãe, nunca me vi tendo filhos, e fazer uma cirurgia para isso seria uma preocupação a menos na vida", afirma. No entanto todas as histórias que ela ouvia sobre a dificuldade de fazer o procedimento a desanimavam. "Eu sempre ouvia que tinha que ter dois filhos para poder fazer. Mas não faz sentido. E quem não quer ter filho nenhum?", diz ela, hoje com 26 anos. Quando tinha 25 anos, Karoline resolveu checar por si mesma quais eram, de fato, os requisitos legais para o procedimento. E descobriu que 25 anos é justamente a idade mínima exigida pela legislação para mulheres que quiserem fazer a cirurgia de esterilização — e que mulheres mais jovens também podem fazer o pedido se tiverem pelo menos dois filhos. "Eu até levei a lei impressa na médica caso algum dos médicos fosse mal informado", diz ela, que ficou positivamente surpreendida ao perceber que não teria resistência. "Era a primeira vez que eu ia nessa médica, do plano de saúde que tenho no trabalho. Demora, mas nenhum dos médicos que eu passei falou que eu não poderia fazer por causa da minha idade ou por não ter filhos", diz Karoline. "Foi um alívio. Eu achei sinceramente que seria mais difícil." Depois de fazer a cirurgia, a jovem compartilhou seu relato no Facebook. O post teve 20 mil curtidas e mais de 16 mil comentários — boa parte dos quais fazendo perguntas sobre o caminho para o procedimento ou querendo tirar dúvidas sobre como é passar por ele. "Eu quis compartilhar minha história para que outras mulheres com o mesmo desejo saibam que é possível, para que elas não desanimem", diz a jovem. "A gente tem que correr atrás dos nossos direitos." "Teve alguns comentários criticando, mas, para ser sincera, depois de um tempo eu parei de acompanhar, estou só respondendo quem me mandou dúvidas por mensagem." Quais as exigências para fazer laqueadura? A Lei de Planejamento Familiar, de 1996, estabelece que a esterilização só é permitida em pessoas capazes, maiores de 25 anos, ou, se forem mais jovens, que tenham pelo menos dois filhos vivos. "Como é um ato definitivo, praticamente sem volta, existe uma cautela na lei para evitar a realização em mulheres muito jovens", explica a advogada Renata Farah, presidente da Comissão de Direito à Saúde da OAB-PR (Ordem dos Advogados do Brasil). "Mas a maioria das dificuldades que as pessoas encontram não são entraves legais, mas da cultura do hospital, do Estado, etc", afirma. A partir dessa idade, as únicas exigências são quanto aos procedimentos que precisam ser seguidos: é preciso um intervalo mínimo de 60 dias entre a pessoa manifestar a vontade ao médico pela primeira vez (por escrito) e o procedimento, e a pessoa precisa ser informada dos riscos da cirurgia, dos possíveis efeitos colaterais, da dificuldade de revertê-la e das outras opções de contracepção existentes. "A médica conversou comigo, perguntou se eu tinha certeza, disse que é um método muito radical e a reversão é difícil, eles explicam tudo", conta Karoline. "Ela explicou que, mesmo com a cirurgia, ainda há chance de falha, já que nenhum método é 100% seguro." "Mas como eu tinha muita certeza ela me encaminhou para a cirurgia", diz Karoline, que também precisou se submeter aos vários exames pré-cirúrgicos de praxe e passou por um atendimento psicológico nesses dois meses. "O que eu digo para quem me pergunta é que é preciso ter muita certeza, porque a psicóloga vai te questionar muito." Initial plugin text Como mora com namorado, a auxiliar administrativa teve a opção de pedir o procedimento como solteira ou como parte de uma união estável. "Acabei fazendo como pessoa em união estável porque achei que seria mais fácil de ser aprovado", diz ela. "Durante o procedimento, ficaram me perguntando qual a opinião do meu namorado, o que ele acha. Ele também não quer ter filhos, mas esse não é o ponto, é uma decisão que é minha." Em casos de homens e mulheres casados ou com união estável, a lei exige que se apresente também a autorização do cônjuge para a realização da cirurgia. "Eu acho super errado, porque o corpo é meu, a decisão é minha, mas como queria evitar ter problemas e tinha essa opção, acabei levando a autorização do meu namorado", diz ela. Após o encaminhamento da ginecologista, da psicóloga e do cirurgião, o plano de saúde aprovou o procedimento. Após todas as burocracias, Karoline foi levada pelo pai e pelo namorado ao hospital, onde ficou um dia internada para a cirurgia. "Meus pais sempre aceitaram de boa que eu não quero ter filhos, é algo que eles sempre souberam e sempre me deram muito apoio", conta. "É gente de fora [da família] que diz, 'ah, mas você vai se arrepender, vai mudar de ideia'. Pessoas que acham que a verdade delas é a verdade de todo mundo." "Eu tenho amigas que têm filhos e não queriam ter, é uma situação muito difícil", diz. "O corpo é meu, a vida é minha, eu sempre tive certeza. Não acho que vou me arrepender", afirma ela, que diz que realizar o procedimento foi a "realização de um sonho". A laqueadura é uma cirurgia um pouco mais complicada que a vasectomia, procedimento de esterilização feito em homens. É caracterizada pelo corte e ligamento cirúrgico das tubas uterinas, impedindo o processo de fecundação. Mas Karoline não teve problemas na recuperação. "No dia, eu não podia levantar e tive um pouco de dor, mas passou com os remédios", diz a jovem, que continuou tomando remédios e anti-inflamatórios nos dias seguintes. "Também tive que limpar os pontos três vezes ao dia, mas foi só. Saí andando do hospital." Karoline diz que sempre ouvia relatos de pessoas que não conseguiram fazer o procedimento Isadora Alves/Arquivo pessoal Teoria e Prática Karoline fez o procedimento pelo plano de saúde — os planos são obrigados por determinação da Agência Nacional de Saúde a oferecer laqueadura, vasectomia e implantação do DIU desde 2008, quando foram incluídos na lista de cobertura mínima obrigatória. Mas nem todo mundo tem a mesma facilidade que ela, com relatos de pessoas que tiveram o procedimento negado por motivos não relacionados a questões médicas ou legais, como "questões religiosas". Uma resolução da ANS determina que mesmo que não haja médico ou hospital no plano que esteja disponível para realizar o procedimento, a operadora do plano é obrigada a indicar um "profissional ou estabelecimento mesmo fora da rede conveniada do plano e custear o atendimento". O Estado também tem, por lei, o dever de oferecer o procedimento de esterilização através do Sistema Único de Saúde — o SUS realizou mais de 67 mil laqueaduras em 2018 e um número parecido em 2017. Pelas regras do Ministério da Saúde, a cirurgia pode ser feita de graça em qualquer hospital público que tenha serviço de obstetrícia e ginecologia. Em 2017, foram realizadas 67.525 laqueaduras, e, em 2018, 67.056 procedimentos. No entanto, são frequentes os relatos de pacientes que tiveram muita dificuldade de conseguir fazer a cirurgia e diversos que não conseguiram. Um estudo publicado neste ano pela pesquisadora Amanda Muniz Oliveira, da Universidade Federal de Santa Catarina, mostra que, embora o procedimento seja garantido por lei, há frequentes recusas na realização da cirurgia no Estado, o que "gerou judicialização de diversos pedidos". A pesquisa mostra que decisões judiciais sobre o assunto em Santa Catarina ora ignoram e ora salientam os requisitos da lei. Segundo o estudo, frequentemente, quando o procedimento é garantido pela Justiça, não é "sob o fundamento de que se trata da vontade da mulher, e, sim, porque a mulher é hipossuficiente financeiramente", diz Oliveira, na pesquisa. "Os Estados, municípios e hospitais podem ter procedimentos locais diferentes, mas não podem restringir direitos que são garantidos pela legislação nacional", afirma a advogada Renata Farah.
Fonte: Globo.com
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