Constelação de satélites ameaça trabalho de astrônomos e observação do céu
Primeiros satélites Starlink sobrevoam o observatório CTIO no Chile Tim Abott/CTIO Você sabe que para se observar os astros, especialmente os mais fracos como nebulosas e galáxias, é preciso um local escuro. Quanto mais escuro melhor, ainda mais se estamos falando de pesquisar esses astros. Por conta disso, os observatórios estão cada vez mais sendo construídos em regiões remotas, fugindo da poluição luminosa das cidades. Os desertos andinos e os gigantescos vulcões adormecidos no Havaí são os melhores lugares para a astronomia profissional, oferecendo pouquíssima poluição luminosa. A população próxima colabora usando iluminação doméstica adequada, bloqueando a luz para o chão, de modo que esses sítios devem permanecer bons para pesquisa durante muito tempo. De volta a Netuno: entenda os próximos passos na exploração do Sistema Solar exterior Por que ‘constelação de satélites’ preocupa astrônomos que investigam mistérios do Universo Sol se prepara para novo ciclo com chance de mais erupções que podem afetar a Terra Mas agora, antecipando um problema previsto para ocorrer apenas nas próximas décadas, os astrônomos estão tendo de lidar com outro um tipo de poluição luminosa: a espacial. Todos os satélites em órbita da Terra refletem a luz do Sol, podendo ser vistos da superfície. Isso depende principalmente de sua área, da distância até o observador, do ângulo de incidência da luz do Sol e da capacidade do material que recobre o satélite refletir a luz. Essa quantidade é chamada de albedo, quanto mais próximo de 1, maior a capacidade de refletir a luz. Atualmente a estimativa é que haja uns 2-3 mil satélites em órbita da Terra, sendo que a maioria a gente não consegue ver. Em outros casos, como o telescópio espacial Hubble e a Estação Espacial Internacional (ISS), é só uma questão de oportunidade para vê-los. Imagem obtida pelo projeto DES no Chile Cliff Johnson/CTIO/DECAM Só que isso está mudando radicalmente nos últimos meses por causa da iniciativa Starlink da empresa SpaceX. Essa iniciativa pretende lançar aproximadamente 12 mil satélites em órbita da Terra, até meados da próxima década (que começa em 2021, por sinal). Isso mesmo, 12 mil satélites dispostos em 3 camadas ao redor da Terra, com distâncias entre 340 km (abaixo da ISS), 550 km (mais ou menos a órbita da ISS e do Hubble) e a mais alta em 1.140 km. Com o lançamento da última segunda feira, dia 06, o total de satélites dessa constelação órbita está em 182 e a ideia é lançar 60 deles a cada 2 semanas. O propósito dessa empreitada é fornecer acesso à internet de banda larga em regiões remotas do planeta e oferecer preços competitivos em áreas já servidas de acesso. Além disso, Elon Musk, o dono da empresa, afirma que os lucros serão reinvestidos nas iniciativas de conquista de Marte. De acordo com documentos internos, a empresa espera estar lucrando na casa de 20 bilhões de dólares em meados de 2025, 100% do total investido. Mas isso tem um preço, a meu ver, muito mais alto: a degradação do céu a ponto de matar projetos importantes. Os satélites estarão dispostos em órbitas, viajando alinhados, de modo a formar uma rede no céu para garantir a cobertura. Nos momentos em que os satélites refletem a luz do Sol, o brilho deles pode chegar facilmente à magnitude 1,6, o equivalente ao brilho das estrelas do Cinturão de Órion, mais conhecido como as 3 Marias. Os atuais 180 satélites já estão causando estrago. Observatórios pelo mundo afora estão compartilhando imagens das passagens da constelação de satélites na frente dos alvos observados. Quando isso acontece é preciso repetir a imagem, pois remover digitalmente a trilha deixada pelo satélite vai alterar a estimativa de brilho do objeto. Imagem obtida no Observatório Lowell (o mesmo que descobriu Plutão). As galáxias estudadas foram atropeladas pelos satélites arruinando os dados Vitoria Girgis/Lowell Projetos de investigação que observam grandes áreas do céu, como o DES que vai tentar desvendar a energia escura e a rede de defesa contra a ameaça de asteroides já sentiram o golpe. Quando toda a rede estiver no espaço, os cálculos apontam que haverá ao menos um satélite em cada grau quadrado do céu (o equivalente à 4 Luas Cheias formando um painel 2x2). Não só a astronomia no óptico será afetada, a rádio astronomia corre sérios riscos. Algumas das bandas utilizadas para comunicação com os satélites são usadas também para pesquisa. Se bem me lembro, são as mesmas bandas usadas para receber e enviar sinais às sondas no espaço. Considerando que o sinal dessas sondas chega aqui muito fraco, vai ser difícil receber os dados. Satélites meteorológicos serão prejudicados. Eu fiz uma simulação que tenta dar uma noção do problema. Inseri as informações das órbitas disponíveis para toda a constelação de 1.200 satélites disponíveis até o momento. Usei as características de céu esperadas para um observatório, ou seja, bem escuro e em uma noite de inverno, que dura mais do 12 horas. A note inteira se passa em apenas 1 minuto e todos os satélites vistos na simulação refletem luz, uns mais outros menos, mas o suficiente para serem detectados por um telescópio de porte pequeno. É assustador! Depois que anoitece, leva umas 2 horas para a sobra da Terra cobrir metade dos satélites, por volta das 19:30, e eles só desaparecem por completo após as 22h! O mesmo repete no amanhecer, os satélites começam a surgir por volta das 02:30 da manhã e tomam o céu todo por volta das 05:30 da manhã. Por baixo, serão 4 horas perdidas por causa dos satélites. Os números mais precisos são ainda piores, já que eu considero os satélites acima da linha do horizonte, ou seja, toda a esfera celeste. Só que os telescópios não apontam tão baixo assim; a área efetiva que eles podem observar é bem menor. Astrônomos estão preocupados que os satélites brilhantes possam dificultar suas pesquisas, como essa trilha de satélite Starlink Marco Langbroek/Sattrakcam Leiden Questionada, a SpaceX respondeu que ainda estão sendo feitos testes, que a configuração final será diferente da atual. Prometeu cobrir os satélites com algum tipo material com baixo poder de reflexão, um deles já subiu na leva desta semana. Além disso, afirmou que vai oferecer dados precisos das órbitas para que os observatórios consigam apontar os telescópios em regiões do céu sem satélites. A empresa também convidou o presidente da Sociedade Americana de Astronomia para participar das reuniões, com poder de voz. Mas não de voto... É certo que este não é o fim da astronomia como um todo, mas pense nos eventos transientes. Por exemplo, explosões de novas, supernovas, surtos de raios gama que precisam de pelo menos duas imagens obtidas em tempos distintos para comparação. Não dá para combinar que uma estrela exploda numa região sem satélites. Atualmente um observatório inteiro, com um telescópio de 8 metros de diâmetro está sendo construído para um projeto assim. A ideia é mapear o céu todo a cada 5 dias para detectar mudanças, por mais sutis que possam ser. Agora ninguém sabe direito o que vai acontecer com ele. Além de tudo isso, o céu é patrimônio natural da humanidade, estabelecido desde 2009 pela UNESCO. O céu está disponível para qualquer um no planeta e pode ser contemplado, ou mesmo estudado, sem o uso de equipamentos. Ninguém quer que nenhuma região do planeta seja privada de avanços tecnológicos, como os prometidos pela SpaceX, mas não é correto que alguém apareça e o deprede o céu dessa maneira. Não é aceitável que alguém determine quando e como cientistas do mundo inteiro possam olhar para cima sem que um satélite arruíne suas imagens.
Fonte: Globo.com
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